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O Airbnb lembra um sujeito que mal conhecemos e que um dia aparece sem avisar em casa, pede para ficar por uns dias, e depois não vai mais embora. É mais ou menos assim que os hotéis se sentem. A menos de oito anos essa impronunciável mistura de letras que ninguém tinha interesse em decifrar nasceu como um inofensivo aplicativo. Hoje incomoda pela sua presença ostensiva e crescente.

No estilo irreverente de seus criadores, o nome inventado combinava duas coisas. As letras iniciais foram emprestadas de “air bed” – colchão inflável, usado nos Estados Unidos quando surgem visitas para pernoitar. A segunda parte da palavra vem de “bed & breakfast”, ou seja, cama e café da manhã.   

Discretamente, mas sem pedir licença, entrou no mundo da hospitalidade pela porta dos fundos, que aliás encontrou destrancada. Trouxe na bagagem apenas um vago conceito em ascensão, algo que se chamaria um dia economia compartilhada. Desde então não parou de ocupar progressivamente o espaço antes reservado apenas à hotelaria tradicional.    

A proposta de negócios era simples: permitir aos proprietários alugarem suas casas ou quartos ociosos por um curto período de tempo a preços acessíveis. Na época, ninguém deu muita bola. Parecia mais uma exploração de um nicho de mercado que nem de longe poderia ameaçar a sólida indústria de hospitalidade. Grave erro de avaliação.

Todo mundo viu o que aconteceu. Quase que num passe de mágica, o aplicativo se tornou a quarta maior agência de viagens online do mundo. Presente em 34 mil cidades de 191 países, oferece 3 milhões de acomodações. Só no Brasil, acumula 100 mil ofertas, 40 mil delas no Rio de Janeiro, onde a empresa conseguiu até se tornar parceira oficial durante as Olimpíadas de 2016.
 Como hoteleiro não é bobo, como foi possível isto acontecer debaixo de seu nariz sem o que alarme fosse disparado? É que o Airbnb cresceu até recentemente fora do radar. Não atingia o cliente típico de hotel, mas sim  viajantes ocasionais, que na maioria das vezes dormiam até então em casa de familiares ou amigos. E também porque a empresa foi matreira ao não se posicionar publicamente como concorrente direto da hotelaria. 

Aliás, isto ainda é assim. Difícil encontrar palavras como “hospedagem” ou “hotel” no site da empresa. Possivelmente foram banidas para contornar potenciais disputas concorrenciais com hotéis e até agências de viagens. No lugar, o Airbnb adota um formidável malabarismo vocabular ao se apresentar como “um mercado comunitário confiável para pessoas anunciarem, descobrirem e reservarem acomodações únicas ao redor do mundo, seja de um computador, de um celular ou de uma tablet”.

 A presença do aplicativo alterou o ecossistema de acomodações para o turismo e colocou a hotelaria mundial em pé de guerra. Não é para menos. Em um ambiente de economia compartilhada e numa combinação tóxica de internet e tecnologias de mobilidade, o produto é altamente inflamável e atinge uma gama diversificada de usuários.

Esta questão é explicitada através de recente pesquisa realizada por Daniel Guttentag, professor de Gestão em Hospitalidade e Turismo da Universidade Ryerson, no Canadá. Ela mostra que uma clara alteração do perfil do consumidor do Airbnb, que deixou de ser formada apenas por mochileiros ou viajantes ocasionais que aceitavam ocupar um quarto com a presença do proprietário. A vasta maioria da clientela é de turistas de lazer que, em função de custos menores, localização e instalações mais completas trocam as salgadas diárias de hotéis pelo modesto aluguel em casas desocupadas. Algo que, convenhamos, dificilmente se classifica como  “economia compartilhada”.  

O mesmo estudo conclui que se a empresa não existisse, 43% dos entrevistados teriam se instalado em hotéis midscale (intermediários, 3 estrelas), 45% em diferentes níveis dos econômicos, e apenas 4% nos com alto padrão. Um trabalho da Boston University rema na mesma direção. Aponta que um aumento de 10% na atividade da empresa reduz 0,39% da receita mensal dos hotéis, principalmente os de lazer e econômicos. Para colocar mais pimenta neste molho com sabor de calamidade, a consultoria PhocusWright prevê que a receita do Airbnb, hoje quase na casa de 1 bilhão de dólares, deve se multiplicar por dez até 2020, e sua participação de mercado deve pular de 1 para 10%. 

Se a briga já era feia, vai esquentar mais. É que o Airbnb acaba de atravessar a última fronteira na busca pelas joias da coroa: a hotelaria de negócios.


Vantagens como 
conveniência, boas instalações, segurança e facilidade nos pagamentos que serviam para blindar o lucrativo mercado de viagens corporativas estão deixando de ser exclusivas dos hotéis. A empresa tem adotado uma estratégia agressiva que oferece ao viajante de negócios alternativas atraentes tanto na excelência da hospedagem como melhores ferramentas de pagamento.

A rigor, a hotelaria carrega apenas uma bandeira que a distingue do Airbnb: a existência de área para reuniões e encontros empresariais. Mas nem todos os estabelecimentos contam com esta facilidade, e as margens de diferenciação se estreitam a cada dia.  “Para prevenir uma hemorragia nas reservas de negócios, os hotéis precisam divulgar mais suas instalações para encontros, melhorar os programas de lealdade, e otimizar a satisfação do cliente”, avalia Alex Hadwick, diretor de pesquisas do portal EyeforTravel.

Os hotéis reclamam de condições desvantajosas de mercado em relação ao Airbnb. Além de exigir pesados investimentos imobiliários, as obrigações vão além dos tributos.

Incluem cumprir leis trabalhistas, normas de segurança, legislação de toda ordem, inclusive de acessibilidade, além de pagar licenças, alvarás e seguros obrigatórios.

reclamação do FOHB, associação que representa 27 redes hoteleiras que atuam em 150 cidades brasileiras, é que falta isonomia na concorrência. O aplicativo não investe, emprega, paga os mesmos impostos (30 a 45%), ou é onerada pela carga administrativa. Por isto, querem que o governo regule a atividade para garantir condições de igualdade.

“Não se trata de nos colocarmos contra, mas entender qual a regulamentação para que se encaixe como atividade econômica dentro das mesmas regras existentes para os hotéis”, explica Luigi Rottunno, presidente da ABR, associação que reúne os principais resorts brasileiros, que também está em pé de guerra.   

Debaixo da artilharia, o Airbnb se defende. Diz que sua atividade é absolutamente legal e regular. Aceita discutir o impacto da sua plataforma e regulamentação, desde que não engesse a inovação e concorrência, pois quem perderia seriam o consumidor e a sociedade. O aplicativo não se considera concorrente dos hotéis, mas sim uma experiência diferente e complementar de hospitalidade.     

O Airbnb vive um paradoxo: é ao mesmo tempo amado pelos consumidores e proprietários de imóveis, mas odiado pelos hotéis. Destes, acumula queixas de concorrência desleal. Não se trata propriamente de má conduta. A falta de regulamentação da atividade, devido à velocidade com que surgiu e se estabeleceu, criou ambiguidades operacionais e zonas de conflito com a hotelaria, semelhantes às da Uber com os taxistas.

“No lugar de RH ou engenheiros, eles só contratam advogados”, ironiza o consultor Roland de Bonadona, ex-Presidente da Accor, maior rede de hotéis do país. É meia-verdade. Como a atividade se expandiu antes do surgimento de leis que a regulamentem e tributem, a empresa vive hoje no mesmo balaio indesejável de quem opera ilegalmente, embora com o beneplácito do consumidor, tais como camelô, software pirata e contrabando. Enquanto a oficialização não ocorre, além de bons advogados, quem vive situação precária como Airbnb tem mais é que distribuir simpatia e ações de relações públicas para conquistar cumplicidade do consumidor.   

O conflito entre hotéis e Airbnb não vai durar para sempre. Ao contrário. Especialistas apostam na convergência de ambos. Na prática o que se vê é cada um copiando as qualidades do outro. De um lado, o serviço online se esforça para aumentar a credibilidade e experiência em hospitalidade. Do outro, a hotelaria vê-se obrigada a sair da mesmice e incorporar experiências locais autênticas e exclusivas.    

O maior problema das plataformas da economia colaborativa é que ninguém consegue prever para onde vai o negócio. “Não há modelos de gestão consolidados: uma empresa aprende com a outra, e apresenta novas soluções que são incorporadas pelas demais”, explica Ana Paula Spolon, professora de hospitalidade e hotelaria da UFF. O Airbnb não é exceção: transformou-se em caixinha de surpresas. A cada dia amanhece com uma novidade. A mais recente foi incorporar uma plataforma que chamou de Trips. Nela, além de acomodações, oferece experiências, e já anunciou que vai estender sua operação também em reserva de voos, carros, restaurantes e serviços.

Uma coisa é certa: o Airbnb chegou para ficar. A sua existência já permitiu baratear diárias e fazer os visitantes ficarem mais tempo em um destino, com benefícios econômicos para o turismo local. Além disso, como caiu no gosto de consumidores e proprietários, a pior alternativa para os hoteleiros seria ignorar a Airbnb e seu potencial impacto para os negócios. Até porque gosto é gosto, e não convém contrariar os clientes.  

Publicado na revista Viagens S.A.com o título de Um Hóspede Incômodo

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