A Azul cresce e aparece
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“E David, munido tão somente de vontade e capacidade infinita de criar e inspirar pessoas, falou: Depois de mim, virá Pedro, que concretizará meu sonho. E então o substituto de Pedro será o próximo guardião da Missão, fazendo com que ela cresça e se multiplique. E um dia todos os homens da Terra vão se aproximar, sem separação por diferenças ou distâncias. ”

Se houvesse uma Bíblia dos Negócios, com certeza incluiria com destaque uma profecia parecida com esta.

Seria atribuída a David Neeleman, o fundador da Azul Linhas Aéreas. Não é para menos. Passados apenas oito anos, a sua visão se concretizou em uma frota de 123 aeronaves que já atende 130 milhões de passageiros para 100 destinos domésticos e cinco internacionais através de 800 voos diários, com o apoio de uma equipe que se aproxima dos 11 mil associados.

 Filho de um jornalista norte-americano que era correspondente no Brasil, o criador da Azul nasceu em São Paulo há 60 anos quase que por acaso. Aos cinco anos mudou-se com a família para os Estados Unidos, onde tornou-se um bem-sucedido empresário da aviação civil. Entre outras companhias aéreas, é fundador da JetBlue.   

 Carismático, dono de uma simpatia e simplicidade contagiantes, representa o amigo confiável que todos gostariam de ter. Mórmon praticante, abusa da perseverança de pregador para motivar pessoas com suas ideias originais sobre a aviação. A seu favor, fareja oportunidades e bons negócios.

Nem tudo foi fácil na vida deste empreendedor de sucesso. Mas ele tem outra rara capacidade: transformar bolas quadradas em redondas. Por exemplo se a vida fez dele portador de Distúrbio de Déficit de Atenção, a doença serviu para dar uma forma de observar o mundo de forma diferenciada, fora do padrão.

Isto permitiu a David desenvolver soluções altamente criativas, jamais tentadas antes. Da mesma forma, quando a JetBlue o afastou da presidência por razões operacionais, ele voltou ao Brasil, onde nascera, para fundar a Azul. Se logo no começo das operações a concorrência criou todo tipo de empecilhos para o acesso da Azul ao aeroporto de Congonhas, principal terminal do viajante de negócios do país, ele teve o mérito de transformar o então ocioso terminal de passageiros do Aeroporto de Campinas em invejável hub.

Se alguém riu dele ao comprar jatos da Embraer quando o padrão Boeing e Airbus predominava no país, ele provou o contrário, ao implodir paradigmas e preconceitos que engessavam o setor. Se, ao contrário dos Estados Unidos, o ônibus estava destinado no Brasil a ser o principal meio de transporte de massa, ele implantou uma linha aérea popular com voo diretos e baratos, decisivo para a democratização da aviação no país.        

Por isto, é um erro grave considerar a Azul apenas uma companhia aérea. Trata-se na realidade de uma verdadeira cruzada, tendo David Neeleman como seu pregador-mor. É um lugar muito especial. Lá quem tem contato com o cliente jamais é terceirizado, especialmente o call center. Todo mundo é considerado tripulante. “Nossos colaboradores precisam pensar que a empresa é o melhor lugar em que eles já trabalharam na vida, e que quem limpa o banheiro tem a mesma importância de quem pilota os aviões”, definiu Neeleman logo ao criar sua companhia aérea.    

Coube ao carioca Pedro Janot, um competente profissional especializado em marketing de varejo, a presidência da empresa. A decisão sinalizava o compromisso de colocar o consumidor no centro dos negócios, algo que muita gente fala, mas poucos colocam em prática. As primeiras iniciativas provaram que a Azul realmente levava a sério a priorização do passageiro.

“As características da Azul exigem estarmos colados 24 horas no cliente, com respostas rápidas e correção imediata dos problemas”, foi um dos primeiros mantras de Pedro. Com sua atuação, ele não só criou condições para o crescimento explosivo da Azul, como o com o seu jeitão cativante captou muito bem o espírito motivador de pessoas que Neeleman queria imprimir à empresa. Um lamentável acidente durante um passeio a cavalo interrompeu a carreira de Janot, que permanece até hoje na Azul como membro do Conselho. No entanto, o seu legado pioneiro foi fundamental para pavimentar o sucesso atual da companhia aérea. 

Em 2014 a empresa não era mais um nicho de mercado. Com três mil funcionários, 30 destinos e uma frota ampliada, acabara de promover a fusão com outra companhia aérea, a regional Trip. Embora feliz com o processo acelerado de expansão, David Neeleman tinha uma grande preocupação. Temia que a Azul se tornasse vítima do mal que acomete as grandes corporações, que é a tendência a se despersonalizar e perder a capacidade de diálogo com os colaboradores e clientes.

Foi com esta missão em mente que encontrou no engenheiro baiano Antonoaldo Neves um sucessor de Pedro à altura dos novos desafios. Com um misto de experiência de campo e planejamento adquiridos em ícones como as construtoras Odebrecht e Cyrela e a consultoria internacional Mckinsey, além de uma rápida passagem como conselheiro da Infraero, Antonoaldo combina as condições ideais para liderar o momento atual da companhia aérea.

 Em um desafiador espectro, vai da chegada de mais acionistas a metas agressivas de expansão e a busca contínua da excelência operacional. “Precisamos revigorar a cultura interna e o serviço ao cliente, e preparar a Azul para o próximo grande salto, diante de seu crescimento inexorável”, resume o novo Presidente.

Avesso ao isolamento alienante dos escritórios, ele gosta mesmo é de vestir as asas e voar para uma das cem bases da Azul, onde ouve equipes e clientes, suas recomendações e necessidades. Com DNA de estrategista, aposta em dois pilares operacionais. O primeiro é que o tamanho do Brasil exige uma frota adequada para o mercado certo. Isto se traduz na empresa adotar aviões de diferentes marcas e tamanhos, que vão de 70 até 260 assentos. O segundo é apostar no poder dos hubs (centro de distribuição de voos), hoje presentes em Campinas, Belo Horizonte e um terceiro em construção em Recife. ” Estudos demonstram que no Brasil 90% dos voos são ocupados por menos de 90 pessoas”, explica Alex Malfitani, responsável pelo programa de fidelidade Tudo Azul, e pioneiro ao ostentar o 24º lugar nas contratações da empresa.

Ex-Diretor Financeiro da Azul, Malfitani revela a estratégia principal de sua área ao recompensar clientes fiéis. Ela não deve ser vista como uma inciativa isolada, mas sim como parte de um projeto maior. O objetivo final é reforçar o relacionamento personalizado que não só sirva para antecipar a demanda de voos, mas permita criar vínculos fortes com o passageiro diferenciado, especialmente aquele que usa com frequência o cartão de crédito. Este mesmo espírito de valorizar o toque humano também se materializou no Clube Azul. É uma espécie de conta poupança que serve para acumular milhas a um custo de apenas R$ 30,00 por mês que permitem sua troca por viagens aéreas da empresa.

Outro exemplo é o Caderninho Azul, que todo executivo leva consigo para anotar sugestões e reclamações de passageiros que registra durante os voos da companhia. O mesmo conceito se estende a brindes exclusivos entregues pessoalmente aos cerca de 10 mil passageiros que atingiram o status Diamante.       

Se na aviação comercial captar e fidelizar clientes é vital, nada disto teria utilidade sem um planejamento de malha aérea capaz de identificar e viabilizar oportunidades. Em um país como o Brasil onde persistem dados estatísticos pouco confiáveis e incompletos ou sem históricos de demanda, como é o caso dos destinos pioneiros, os acertos muitas vezes ocorrem na base da tentativa e erro. Ou “com um pouco de arte”, como prefere definir Marcelo Bento, diretor de Planejamento e Alianças da Azul.

Um novo destino pode ser incorporado a partir de voos exploratórios de ATR com capacidade para 70 passageiros. Foi assim com cidades pouco conhecidas como Sorriso ou Sinop, no Mato Grosso. Ou casos como Teixeira de Freitas, na Bahia, que somando agronegócio e o turismo, surpreendeu pela demanda consistente, e até ganhou aeroporto construído em terras doadas por um fazendeiro.

“A Azul não é nem uma companhia aérea regional, nacional ou internacional, mas as três coisas juntas. Nossa vocação é a capilaridade”, define Bento. Neste cenário, a empresa já definiu que não pretende ser global, mas aposta em fortes alianças internacionais que permita estender seu alcance a outras regiões do mundo. Este papel está sendo entregue à United para o continente norte-americano, à portuguesa TAP para a Europa, e à chinesa Hainan para a Ásia.                      

Voar ao mesmo tempo tanto para a modesta Sorriso como para a metropolitana Miami exige muito jogo de cintura, reconhece Antonoaldo Neves. Ele sabe que apesar da aviação brasileira ter dobrado de tamanho depois da desregulamentação entre 1995 e 2005, e do salto quântico da infraestrutura aeroportuária nos últimos anos, falta muito ainda para atender o potencial de mercado. Destaca alguns empecilhos, como o raquitismo da infraestrutura regional, que obriga a suspender voos noturnos, como na cidade de Sinop. Ou o preço estratosférico do querosene de aviação no Brasil, que representa 40% dos custos, e o dobro do resto do mundo. E ainda as diferenças gritantes de valores do combustível cobrados no interior do país que acabam por inviabilizar a operação, como em Cacoal, em Rondônia, que sai cinco vezes mais que São Paulo.

Some-se a falta de um arcabouço regulatório moderno, com uma política de franquias que não penalize o passageiro sem bagagens ter que dividir a conta de quem embarca carregado de malas. Ou ainda uma legislação trabalhista dissociada do mundo contemporâneo, que obriga uma companhia aérea a contratar um colaborador por um mínimo de oito horas diárias, quando só são necessárias duas horas, como ocorre por exemplo em aeroportos regionais.

 Mesmo com as dificuldades, o sonho de David se transformou em realidade através de Pedro, e agora se consolida com Antonoaldo. E é dele a frase definitiva: “A nossa missão é humanizar a aviação”. Que não restem dúvidas de que ele entendeu muito bem a  mensagem.

Publicado na revista Viagens S.A.

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