INFERNO EM ALTO MAR – 3a parte
A contaminação pelo coronavírus em fevereiro de 2020 e a quarentena de 3.600 viajantes do Diamond Princess no Japão colocou os cruzeiros sob intensos holofotes. Ao confinar milhares de passageiros em espaço reduzido e por longos períodos não os tornam incubadores de doenças? Afinal, da forma como são praticados, estes navios gigantes não representam um risco para a saúde pública?
Mas esta não é a única preocupação que estes megaresorts aquáticos provocam. Além dos fatos já apontados nos dois capítulos desta trilogia há outros que merecem igual atenção.
LEIA AQUI A 1a PARTE DA TRILOGIA – Embarcados e esquecidos
LEIA AQUI A 2A PARTE DA TRILOGIA – Os Majestosos agentes da poluição
Exemplos de acidentes recentes envolvendo este tipo de embarcação justificam este temor. Como o imenso Costa Concordia que em 2012 se chocou junto à ilha de Giglio, na Italia, e a seguir afundou matando 32 das 4.300 a bordo. Ou o MSC Opera com seus 13 andares que em junho de 2019 perdeu o controle em Veneza, colidindo com o cais e um barco turístico com 110 passageiros, causando 5 feridos.
Ou, cinco semanas depois, ali perto, o Costa Deliziosa de 12 andares por pouco não atinge um iate durante tempestade. Ou ainda os dois navios da Carnival que se chocaram em dezembro perto de Cozumel, México, deixando 6 feridos. Como avaliar estes casos: fatos isolados ou avisos importantes de que crises iguais ou piores que estas podem acontecer?
As cidades também se mostram cansadas de aturar os mega cruzeiros predadores. Sinais pipocam por todos lados. Há reclamações de “overtourism” produzido por estas naves e suas consequências. Tudo isto provocado pela maré incontrolável de gente despejada sem critérios deste tipo de navio.
Como elefantes que invadem uma plantação de orquídeas e deixam um rastro de estrago, os cruzeiros predadores desembarcam de repente milhares de cruzeiristas em espaços culturais, legados históricos ou atrações geográficas. Presentes por pouquíssimas horas, multidões ávidas não só prejudicam a qualidade de vida dos moradores, como geram insignificantes receitas para o comércio local. Feitas as contas, despreparados para receber tanta gente, destinos como Veneza, Santorini, Barcelona, Palma de Mallorca, Dubrovnik, Cozumel, Bruges, Amsterdam, Dublin e Galápagos resolveram declarar guerra aos cruzeiros. Começam a proibir, impor limites de embarcações por dia, ou taxar passageiros.
É o caso de Veneza. Os 600 navios de cruzeiros predadores que chegam por ano, alguns despejando até 7 mil pessoas por vez, estavam sobrecarregando demais a frágil infraestrutura. Os acidentes citados acima foram a gota d’água para a cidade proibir os megabarcos de trafegar pelo Canal de Giudecca e desembarcar no porto junto ao Centro Histórico.
Tampouco Dubrovnic conseguiu escapar da fúria invasiva. As ruas estreitas de sua área histórica ficavam engarrafadas todo dia por mais de 10 mil passageiros vindos de até 10 navios. O desembarque está agora restrito a 2 cruzeiros, somando um total de 5 mil passageiros. Há planos de reduzir ainda mais e cobrar taxa de visitação.
O minúsculo país vizinho, Montenegro, sofre com a chegada de 3 cruzeiros predadores por dia na pequena Kotor. São 500 navios por ano com meio milhão de passageiros. Os gigantescos barcos deixam na baía um rastro de destruição. A poluição sonora somada ao combustível sulfuroso afeta o ecossistema, assim como mata peixes, golfinhos, tartarugas e corais.
A ilha grega de Santorini não aguenta mais receber 10 mil cruzeiristas por dia. O porto de Barcelona, com 3 milhões de desembarcados por ano, foi considerada o mais poluído por cruzeiros da Europa. Assim como em Palma de Mallorca, os residentes exigem ações para reduzir a poluição e o trânsito de tanta gente.
Galápagos estabeleceu controles rígidos para impedir prejuízos à vida selvagem e diferenciado meio ambiente. Bruges limitou o número de cruzeiros de 5 para 2, pois a cidade medieval não suporta mais 6 milhões de passageiros por ano. Amsterdam também criou taxa para quem desembarcar.
Há 50 anos os cruzeiros não praticavam turismo em massa. Hoje, passageiros que chegam mal conseguem tempo para conhecer e consumir no destino. Poucas horas depois embarcam para provavelmente nunca mais voltar.
O pior é que o número e tamanho de navios de cruzeiros não para de crescer. Há hoje neles tantas alternativas de entretenimento que nem precisariam ir a lugar algum. Ninguém se deu conta, mas cruzeiros deixaram de unir destinos para se tornar um destino por si. Impressionantes hotéis flutuantes e autossuficientes em comida e diversão, viajar neles para algum lugar é só pretexto.
Diante deste cenário, cabe questionar se estes cruzeiros predadores não estariam concorrendo com resorts e destinos. Se for verdade, isto ocorre em condições de igualdade? Será que os resorts estão perdendo reservas para estes verdadeiros hotéis flutuantes? Os desembarques-e-embarques relâmpago são mesmo bom negócio para os destinos, numa relação custo-benefício? Estas visitações em assustadores volumes compensam, ou podem provocar estragos irreversíveis ao meio ambiente e afetar a qualidade de vida dos residentes? Estas e outras questões não podem ser ignoradas no Brasil. Precisam ser discutidas. Voltaremos ao assunto em breve.