CHEGA DE REUNIÃO (resenha)
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SALVEM OS TUBARÕES BALEIA (DOS MERGULHADORES) !
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Denunciar à polícia um sofisticado conto do vigário? Nem pensar. Tecnicamente não há golpe. “Marques” nunca pediu dinheiro: eu é que ofereci. O investimento serviu como aprendizado, embora de forma excêntrica.

~~LIÇÕES DE UM GURU DE RUA

O telefone toca. Um senhor se apresenta como porta-voz de agricultores de Anauá, Roraima, interessado em meus serviços em comunicação. Fui indicado por um consultor cujo nome não reconheço, que no passado teria trabalhado na Promon. Ele tem pressa, está só de passagem por São Paulo. Sugiro um encontro no aeroporto de Congonhas, onde dentro de duas horas chega outro cliente. Apresenta-se um homem nos seus sessenta e poucos anos, digno, bem apessoado, mancando de uma perna. No café ele me conta a sua incrível história. José Marques, originário do Paraná, relata que está em Anauá desde 1959. Com outros 17 agricultores, produzia arroz em 328 mil hectares de ricas savanas. A produção era integralmente absorvida pela Venezuela, e chegou a representar US$ 70 milhões quando o país mantinha um programa social para 6 milhões de pessoas. A desestabilização da economia venezuelana extinguiu o contrato. Através da Price Waterhouse, contratada pelo grupo para uma reengenharia, Marques aprendeu a dura lição: não se faz monocultura, nem se tem apenas um cliente, ainda mais um que depende de um produto – no caso, o petróleo. A associação que Marques representa – formalizada como União dos Produtores Agrícolas do Vale do Anauá – decide seguir quatro principais recomendações dos consultores. A primeira, já implementada, é complementar as plantações de arroz com manga e mamão, voltando-se, até por conta de logística, para o mercado internacional – com foco no Japão, União Européia e Estados Unidos (este até com a aprovação das suas frutas pelo FDA). A segunda, é fazer investimentos sociais, não permitindo bolsões de miséria em torno dos campos, além de viabilizar a chegada de novos investidores, criando massa crítica. Ainda há, segundo ele, 16 milhões de hectares de savanas a ocupar. Ele se entusiasma, descreve o projeto com detalhes, cita fatos, dados, processos. A terceira recomendação é fazer uso intensivo da biotecnologia orgânica – e por conta disto acaba de terminar um curso na Unicamp. A quarta, é investir em comunicação. Se nada for feito, disseram os consultores, todo o investimento pode dar com os burros n’água. Uma imprensa mal informada ou uma ONGs pode provocar nos consumidores internacionais uma percepção devastadora. Acusações equivocadas de que o grupo estaria destruindo a preservação ambiental, ou explorando mão de obra infantil, barata etc. levam a um boicote que acaba com o negócio. Injustiça, pois pelo que diz o agricultor, seu projeto tem plano urbano, escolas e hospital. Atende 5412 pessoas, entre empregados e indiretos. Mas Marques vive um grave problema: foi vítima da violência urbana. Seqüestrado em Campinas uma semana antes do encontro, os bandidos roubaram U$ 4,5 mil dele. Depois de uma noite infernal num carro, os seqüestradores o deixaram em um canavial em Paulínea às 2 horas da manhã sem vários dentes e uma perna que o pronto socorro queria amputar. O Hospital das Clinicas prometeu recuperar o membro, às custas de pesada fisioterapia, o que ele pretende dar prosseguimento assim que me deixar. Pergunto como veio ao meu encontro, e o que faz em São Paulo. Explica que pretendia receber o seguro de um relógio valioso, sem resultados. Um médico que o tratava emprestou 50 reais. Vive no alojamento dos estudantes, na própria Unicamp. Não aceita dinheiro, nem almoço. Conta que não pode nem quer entrar em contato com a família. A telefonia da região está sendo substituída pela digital. Além disso, não quer assustar os parentes. Prefere aguardar o tratamento. Promete enviar-me o plano diretor em dez dias. Pede que eu faça uma visita de campo às terras. Insisto em emprestar dinheiro. Recusa-se com firmeza. Volto a oferecer. Relutante, aceita algum dinheiro. Esta história só tem um grave problema: é um sofisticado conto do vigário. Nem deu tempo de checar as informações. Dois dias depois, encontro amigos que têm uma empresa de vitrais. Contam que há três anos foram contatados por um senhor que, pelo perfil e roteiro (com pequenas variações), reconheço ser o meu “José Marques”. Queria vitrais para uma catedral na selva, um projeto de um arquiteto italiano financiado pelo grupo. Conteúdo idêntico na essência, ele soube adaptá-lo com muita competência às peculiaridades do negócio dos meus amigos. O desfecho é o mesmo: o empréstimo várias vezes recusado, até que finalmente aceito. Um gênio do mal? Talvez. Mas mesmo ações desonestas trazem ensinamentos.
Este case, como prefiro chamá-lo, embute pelo menos 10 lições. São dignas de fazer parte dos melhores compêndios dos pelos maiores gurus do mercado:
1. Conhecer o assunto profundamente e acreditar no produto e argumento, no que fala e no que faz
2. Conhecer bem o negócio do cliente e, principalmente, as oportunidades potenciais de seu mercado
3. Jamais vender; deixar que o cliente compre
4. Preparar-se exaustivamente para a ação. Treinar, agregando melhorias ao processo, numa busca contínua pela excelência
5. Possuir o physique du role – e isto se aplica em tudo: na linguagem verbal e não verbal, aparência, roupa e postura
6. Adaptar o seu discurso a cada cliente – dar a ele e seu negócio um tratamento personalizado e exclusivo. Falar o que ele quer ouvir.
7. Transformar qualquer desvantagem, até mesmo a física, em uma oportunidade
8. Manter sempre uma postura positiva, otimista e empolgante.
9. Ser criativo. Sem perder o foco e o discurso, ter a capacidade de improvisar diante de súbitas mudanças de cenário
10. Correr riscos. Preparar-se para perder ou ganhar.
Denunciar à polícia? Nem pensar. Tecnicamente não há golpe. “Marques” nunca pediu dinheiro: eu é que ofereci. O investimento serviu como aprendizado, embora de forma excêntrica. E pior. Como eu, quantos não pagam para ouvir famosos gurus – alguns com tradução simultânea – falarem sobre coisas que de antemão sabemos não terem qualquer utilidade prática?

Publicado no jornal O Globo

Maio de 2005

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