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CEMITÉRIO DE ILUSÕES PERDIDAS - A Turquia ganhou fama de se tornar centro de sucateamento de navios de cruzeiros.

Por Francisco Ancona, especialista em cruzeiros (*)

1ª parte

NO… LA NAVE NON VA…

A fila para o desmanche nos cemitérios de navios da Índia, Turquia e outras paragens está dobrando a esquina.

Dezenas de outrora famosas embarcações estão destinadas ao sucateamento, onde se salvará apenas o que for reaproveitável no mercado do usado, ou seus materiais recicláveis.

Com essas macabras e irreversíveis operações, sepultam-se nomes outrora familiares ao mercado brasileiro – unidades da Costa, Royal Caribbean, Pullmantur e Iberocruceros, habituais por aqui, encabeçam a lista.

Como interpretar essa pandemia marítima, atualmente em curso?

A aspiracional retomada do segmento turístico, ainda anêmica e globalmente vulnerável, aflige em especial o mundo dos cruzeiros.

Joia da coroa da indústria de férias até um ano atrás, com ocupações na casa dos três dígitos, listas de espera, tarifas dinâmicas que subiam por minuto, esse produto em parte agoniza justamente devido às suas características genéticas.

IMAGENS DO PASSADO – O imponente Sovereign of the Seas da Royal Caribbean, para 2600 passageiros, já virou sucata.

Passado perdido

Relacionar-se, aproximar-se, confraternizar, festejar, sempre estiveram no DNA das viagens marítimas. Suas equipes de recreadores, músicos e artistas garantiam a atmosfera cativante da experiência al mare, promovendo festas, bailes, jogos, torneios.

São práticas hoje condenadas até pelos mais liberais protocolos de higiene e saúde. Impensável adotar distância social numa festa noturna no deck, ou num baile de gala no salão central. Sem falar dos teatros lotados nos shows de variedades, no melhor estilo Broadway.

Em tempos de máscaras e álcool gel mandatórios, muito mais foi erradicado dos navios de cruzeiros que os frequentes sorrisos dos turistas.

Algumas notícias recentes sinalizam tempos ainda incertos para essa indústria.

Conferindo o que andou sendo divulgado pela mídia e as próprias companhias de navegação:

MSC cancelou temporada brasileira 2020/21

Louve-se o empenho da líder de mercado em tentar manter sua operação local até o fim, mas o fato é que pela primeira vez em mais de meio século nossos mares não terão navios de turismo durante a alta estação.

Inicialmente escalou cinco navios, caindo para quatro no imediato pós-pandemia, e para dois quando as escalas na Argentina e Uruguai se tornaram inviáveis. Mesmo assim, a MSC não conseguiu convencer as autoridades (in)competentes que seu sofisticado protocolo sanitário, considerado eficiente na Itália, poderia garantir cruzeiros seguros na costa brasileira. A lamentar.

Em tempo: a segunda empresa do mercado, com mais de setenta anos ininterruptos navegando por aqui, meses antes já tinha renunciado ao desafio, desapontando agentes de viagens e passageiros. Em nome de seu glorioso passado, podia ter ao menos feito de conta que se empenharia em conseguir operar.

CENAS DO PASSADO – foi-se de vez a bonança de navios durante a temporada de cruzeiros no Brasil.

Caribe, a meca dos cruzeiros, sumiu do mapa

O mercado do Caribe, abastecido em boa maioria por consumidores norte-americanos de todas as classes e perfis, sempre foi responsável por dois terços do movimento mundial do setor.

Viagens de um a catorze dias de duração zarpavam regularmente da Flórida, Louisiana, Texas, Bahamas, Ilhas Virgens com destino às ilhas mais desejadas do planeta.

Em março 2021, data prevista para o reinício das viagens na região (a NCL, no ranking global das top 5, acaba de adiar para abril seu possível retorno), a interrupção fará aniversário.

Com isto, a gigantesca frota de navios está se deteriorando, fragilizando economicamente as empresas de navegação, dizimando a rede de distribuição, aniquilando os destinos turísticos. A verificar os efeitos de tantos danos, em breve – se a pandemia permitir.

IMAGENS ANTIGAS – A ausência gritante dos outrora numerosos cruzeiros nas Bahamas se repete por todo o Caribe.

Atraso nas entregas dos meganavios

De anos para cá, o crescimento do mercado de cruzeiros impôs a encomenda de navios cada vez maiores.

Assistimos ultimamente uma sucessão de inaugurações de “maiores navios do mundo”, com capacidades surreais de 6.000 passageiros – ou até mais.

Verdadeiras cidades flutuantes, seus milhares de camarotes precisavam ser ocupados a cada semana, com impressionantes números de catering e de postos de trabalho. Eram Torres de Babel náuticas com dezenas de nacionalidades compondo suas tripulações.

Esse fatal 2020 impôs uma freada brusca nos planos, inicialmente tirando de navegação os barcos menores e mais velhos, primeira etapa no inevitável processo de redução da oferta global.

Agora, estamos observando o atraso na entrega dos gigantes em fabricação… Afinal, qual a pressa de tê-los integrados às frotas, se não há portos que os recebam tampouco turistas que os ocupem?

Bizarrices inéditas

É o caso recente do Costa Firenze, previsto ser inaugurado em setembro de 2020, e entregue pelo estaleiro Fincantieri apenas dia 22 de dezembro, três meses além da data programada.

E com um agravante: o navio deve zarpar para seu cruzeiro inaugural talvez em fins de fevereiro, o que significará pelo menos dois meses de dolce far niente em algum porto italiano.

Isto acrescentará aqueles inevitáveis sinais de ferrugem em seu alvo casco, antes mesmo do primeiro passageiro colocar os pés a bordo.

A propósito das bizarrices atuais, esse navio não passou pelo cerimonial inaugural – com madrinha, corte da fita, garrafa de espumante no casco etc.

Suprimidos o glamour e os canapés, tudo se resumiu a uma insípida cerimônia digital, com a nave melancolicamente atracada em Marghera, onde foi construído. A cena constrangedora se completou com os boards da Carnival e Costa, seus proprietários, intervindo on line da Flórida, de Gênova, de Hamburgo…

E ainda há quem se orgulhe de tamanha praticidade e objetividade tecnológica. A lamentar a quebra de mais um rito que a tradição naval impunha há séculos. A Netuno, a palavra.

LANÇADO ÀS MOSCAS – O Costa Firenze, inaugurado virtualmente, está estacionado no estaleiro onde nasceu.

(*) FRANCISCO ANCONA, paulistano, é profissional de marketing turístico e atua há mais de 30 anos no segmento marítimo. Realizou mais de 150 projetos no setor, sendo também criador dos cruzeiros temáticos mais conhecidos da costa brasileira.

 LEIA AQUI E AGORA A 2a. PARTE 

 

2 Comments

  1. Marcelo Marenga disse:

    O Turismo em termos globais está vivenciando um fenômeno inimaginável, sem precedentes e perspectivas de normalização!!!